Criadores de Vínculo

Dona Antônia nos recebe em sua casa para uma viagem distraída, deslocada do tempo, do espaço e imersa num  universo quase onírico de memórias do que se poderia ser, do que se poderia escolher.

As três Antônias, ou três faces de Antônia (Adalberto Pereira, André Demarchi e Rebeca Oliveira de Carvalho) recebem a todos nós como visitas, nos servem um cafezinho e bolo, cativando-nos com seu papo furado de tia ou avó. Auxiliadas e acompanhadas pelos “mininus” (Artur Junges, Camila Feoli, Rogério Francisco Costa e Thunay Tartari), nos cercam de histórias e reflexões sobre como poderia ter sido a vida de Antônia se houvesse a possibilidade de ter feito no passado outras escolhas.

Nós, o público, também somos “mininus” e desde o princípio já somos engolidos pela vida dentro da cena.

O Núcleo Ás de Paus presenteia mais uma vez a cidade de Londrina com sua arte. “A Pereira da Tia Miséria”, primeiro espetáculo do grupo, é um mergulho na cultura nacional e traz o melhor do teatro de rua; rendeu-lhes vários frutos como prêmios importantes e a comparação, feita pelo crítico Valmir Santos, com a peça “Romeu e Julieta” do Grupo Galpão, espetáculo de rua com relevância e referência nacional.

“Singra”, segundo espetáculo do grupo, coloca o público em peregrinação sensorial e vertiginosa ao encontro com sua ancestralidade.

Também em “Donantônia”, terceiro espetáculo do grupo, nos é revelada sua minuciosa pesquisa, a qual eles mesmos nomeiam de “prolongamento do ator”, onde pernas de pau, bastões, muletas, instrumentos de equilibrismo, máscaras, entre outros elementos estabelecem  outras formas de relações e reações tanto no público, quanto nos próprios artistas.

Talvez um dos vários pontos fortes do grupo seja a acuidade poética com que criam essas relações e reações nos conduzindo a uma viagem coletiva e pessoal.

A cenografia e iluminação pensadas por Rogério Francisco Costa chamam muita atenção. “Todos os objetos em cena têm utilidade, nada vai pra cena se não fizer parte dela”, conta Rogério enquanto conversávamos sobre os objetos de cena que são ressignificados.

Estruturas simples, como uma mesa ou cadeiras, no decorrer da peça se transformam, mudam de lugar, de função, de significado. Há uma visível preocupação dele e do grupo em estimular a imaginação do público.

Simples xícaras de café em cima de lanternas se transformam em vagalumes criando uma das imagens mais delicadas da peça.

O grande ápice é a entrada de um trem em cena; no escuro acende-se um farol e  algo (prefiro não descobrir o que era, assim não perco a fantasia de minha memória) passeia pela cena, empurrado pelos atores… Pergunto-me, será possível ser mesmo um trem?

O figurino nos enche os olhos e também foi pensado pelo grupo, exceto as máscaras e perucas das Antônias, criadas por Daniele Stegmann, que compreendeu e transmitiu o que eu poderia chamar de essência da personagem com uma simples colher de chá colada no centro das máscaras.

Yara Camillo assina a dramaturgia junto ao grupo. O Núcleo se aventura ainda mais no processo colaborativo e entrega a criação e direção musical para um de seus membros, Thunay Tartari, que faz emergir a personalidade do grupo e consegue escancarar nos atores o prazer por cantar, cantar juntos.

O grupo se resolve e se complementa de forma certeira. As cenas transbordam os limites da sala de apresentação nos levando a conhecer um pouco do laço que existe entre eles, laços tanto de trabalho quanto de afeto. É possível senti-los conectados a todo tempo.

Os artistas se escutam, se respeitam e se admiram, dentro e fora de cena, o que fortalece o processo colaborativo da criação que assumem. Em suma, Donantônia alude-me a Manoel de Barros, seus insetos, sua natureza humana e acontecimentos despercebidos que nos aflora singelas felicidades.

Marina Rodrigues Quesada

  • Marina Rodrigues é bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Londrina.
    Integra os seguintes coletivos londrinenses:
    Grupo Hemostasia, como performer; e Coletivo GEMA – Mulheres Artistas, como artista e produtora cultural.
    Atualmente Marina vive em São Paulo.
    Contato: marinarodriguesq@gmail.com